quarta-feira, 2 de junho de 2010

Porque não estou grávido, por Helder Miranda

Série "Caminhos Percorridos"

Eram exatamente 5 horas e acordei atordoado com um homem em minha casa. Escutei, e pulei da cama, mas era apenas o despertador do celular que, se tocasse alguma música que eu gostasse, seria desligado e eu voltaria a dormir. Não sei se o susto todo foi motivado porque estava assistindo, em capítulos, “Capote”, o filme em que um jornalista acaba envolvido afetivamente com o assassino de um crime mostruoso, ou se havia, ali, o agravante do pesadelo de sempre: um homem que me aborda em uma rua deserta e mete uma bala em minha cabeça.

O pesadelo, que me acompanha desde sempre, coloca, em mim, uma docilidade mórbida. De quem teme ser assassinado embora, na infância, tenha sonhado em ser o “ajudante do mágico” ou o “palhaço do circo”. Um pesadelo que não vai embora, embora tenha tentado com algum esforço, seguir os preceitos de uma reportagem no Fantástico que afirmou, veementemente, que todos podem mudar os sonhos. Comigo era mentira ou, na melhor das hipóteses, o que me frustra profundamente, não funcionou.

“Desliga essa m...”, pediu minha esposa. Com os cabelos armados, desliguei o celular e fui para a pia molhar o rosto e os cabelos, ainda sem acender a luz. Depois, sentei na privada por alguns minutos e soube que, se não saísse dali, voltaria a adormecer, como de fato já acontecera algumas vezes. Acendi, então, a luz da sala, enquanto estava na cozinha.

Sempre que acordo, há uma espécie de ritual que gosto de seguir. O primeiro é pensar um palavrão quando o celular desperta. O segundo, colocar os pés no chinelo. Depois, urinar, lavar as mãos, o rosto, os cabelos e preparar dois copos de leite com achocolatado. O meu, que é consumido na hora, não precisa ser tampado, o dela, algum tempo depois, sim. O meu, com cereais, o dela, que gosta apenas de vez em quando e reclama quando me esqueço disso, não. Às vezes, quando acordo atrasado, o ato de preparar o achocolatado é substituído por encher o copo com leite de soja, quase sempre no sabor maçã – o nosso favorito.

As roupas já estão escolhidas do dia anterior, e eu as visto, meio mecanicamente. Antes de descer o lance das três escadarias do prédio pequeno e aconchegante, coloco o fone de ouvido, na música que mais escuto atualmente. E, quando olho para trás, na rua deserta, vejo que ela está na janela, me observando de uma maneira muito protetora. É claro que se alguém estiver de tocaia no escuro, ela nada poderá fazer, mas me sinto feliz por ser tão amado. O problema, justamente, foi eu ter me virado para olhar a janela no refrão da música que mais escuto atualmente – “And if you sleep, you sleep with God. And if I cry, it's for my heart, why should I hope to make it through? Cause if you sleep, I'll sleep, too” – e ter a certeza absoluta de que algo de muito ruim me aconteceria em São Paulo. Parecia uma despedida. Pensei o por que de eu não estar grávido, tamanha a tragédia iminente que está a um passo de ser concretizada, o bebê parece relutante, ou talvez espere pelo momento de eu, como pai, estar mais amadurecido.

No ponto de ônibus, perto da casa de shows mais movimentada e menos bem frequentada da região, algumas pessoas, bem feias e com muito pouca roupa para o frio do horário bebem, fazem alguma algazarra, brigam e se beijam. Eu pego a primeira lotação que passa, mas naquele dia o banco de passageiro solitário, em que minhas pernas não ficam prensadas no banco da frente, mesmo às 5h41, já está ocupado. Uma moça gordinha e com os cabelos pintados de loiro-prostituta senta, e me cumprimenta. Penso que é educada, e fico feliz, mas logo ela começa uma discussão com o motorista, que afirma que ela está muito “grandinha” para pagar meia, e ela rebate, em um grito: “é pós-graduação, filho!”. Depois disso, dormi e acordei em frente ao ponto do Jabaquara, que dá para o Metrô.

São 6h40 e desço da lotação, sentindo que o frio de São Paulo não me faz nada bem. Alguns homens gritam: “praia”, “São Vicente”, “Santos”, “Praia Grande”... E eu, talvez ainda sensível por ter acordado há pouco tempo, sinto dor no ouvido a cada grito. Sou um homem comum, mas com uma dose de irritação acima da média para a minha idade. Estou ficando velho, e muito antes do tempo, reconheço.

Às 6h41 ou 42, acredite, há pouca fila para comprar o bilhete do Metrô e, como terei de comprar mesmo, peço passagens de ida e volta. Há nas pessoas que entram, inclusive em mim, certo desespero para entrar e sentar. Eu gosto de sentar de frente, se for de costas, tenho ânsia de vômito, mas sempre confundo – então quando há um lugar de lado (que não seja azul, pois já aprendi que é assento reservado), eu prefiro. E vou assistindo aquela TV que dá indicações boas de cultura e sites, como o Booh e um ou outro blog, como o de um argentino que vive na megalópole, que passei a adorar: San Pablo-SP.

Durmo um pouco mais, depois de ser avaliado por todo o mundo. Penso que aqui os homens, sobretudo os que gostam de outros, são mais audaciosos, não têm medo de encarar. As mulheres, no entanto, aparentemente são mais inacessíveis – e tem os traços mais delicados do que em minha cidade.

Descendo do Metrô, vejo uma baixinha morenda correndo em minha direção, com um sorriso de orelha a orelha. É a Andressa, que trabalha comigo, e enquanto ela fala sobre a dúvida que teve se era, ou não, eu, após nos abraçarmos, meu coração se enternece de não estar mais só em São Paulo, e ainda com uma pessoa querida: qualquer má impressão sobre a tragédia que poderia ocorrer comigo, desapareceram. Naquele dia, ela me salvou.

São 7h30, e voltar a estudar, dez anos depois de entrar na universidade, é uma espécie de segunda chance, eu sei, penso dentro do ônibus que, para mim, internamente, é um barco-viking. Gosto de sentar nos últimos bancos, bem no alto. É como no meu filme favorito, e inconfessável, que a protagonista, interpretada por Drew Barrymore, volta à adolescência. Minha vida, quase interrompida após um pré-avc em um final de domingo aparentemente normal em agosto passado, que acabou com minha relutância em colocar uma criança no mundo, está novamente na minha mão. Resolvi vir de peito aberto, não ser tão reservado quanto sou em minha cidade. E vejo a arte na rua e, com certeza, um mural em frente ao cemitério que jamais irei esquecer: “o cachorro ri pelo rabo”. Não teve como não esboçar outro sorriso largo. Estou no páreo.

Se você teve curiosidade em saber qual é a música que mais ouço atualmente, é só clicar no link: If You Sleep.

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